
“Marcha soldado, cabeça de papel, se não marchar direito vai preso no quartel. O quartel pegou fogo, a polícia deu sinal, acorda, acorda, acorda a bandeira nacional”.
A antiga cantiga de roda embalou a infância de quase todos os homens e mulheres brasileiros ao longo de muitos anos. Mas hoje, esses versos ganharam um significado mais claro e menos lúdico. Eles traduzem com um tom patriótico ufanista a forma como o Policial Militar é tratado na sociedade brasileira. O status de militar carrega consigo prerrogativas hierárquicas e autoritaristas que fomentam a intransigência de um Estado e pouco presente na vida do cidadão.
Se não marchar direito vai preso no quartel... E então, o quartel pegou fogo. Parece que os governantes brasileiros se esquecem que as terras tupiniquins não são território suíço, e que os números alarmantes da criminalidade e da violência no Brasil são só uma realidade presente em comunidades empobrecidas. E mesmo que fosse, isso só reforçaria o descaso da administração pública para com o cidadão e o preconceito de classe existente na nossa sociedade. Aqui, na República das Bananas, policial responsável para com a família e seus compromissos financeiros faz bico de segurança escondido, (porque isso não é permitido) isso quando ele não é seduzido pelo crime. Aqui, arriscar a vida para trocar tiros com criminosos vale pouco mais que R$ 1.000,00 por mês. Isso sem contar os mais de 3 mil policiais quase sem salário por causa de empréstimos consignados através da ABEPOM (Associação Beneficente dos Policiais Militares) dirigida apenas por oficiais da corporação – que ganham em média 10 vezes mais. Aqui, na terra brasilis, segurança é sinônimo de dinheiro. Afinal, quem paga tem educação de qualidade, saúde digna e segurança privada.
Entre os dias 22 e 27 de dezembro de 2008, cerca de metade das terras catarinenses ficaram sem atividades de segurança pública, ou seja, sem policia e bombeiros. Entre mortos e feridos salvaram-se as mulheres. A Associação dos Praças do Estado de Santa Catarina (APRASC) deflagrou neste período um movimento, encabeçado pelo Movimento das Esposas e Familiares dos Praças, já que militar não pode reivindicar direitos trabalhistas porque, em suma, a Lei diz que ele tão somente deve cumprir ordens sem questionar. O movimento, que foi taxado de criminoso pelo governo estadual e pela grande imprensa, incomoda aqueles que querem manter uma imagem irretocável da administração pública em Santa Catarina. Quer saber qual foi o crime? Reivindicar o cumprimento de uma Lei. Seria cômico se não fosse trágico.
A Lei 254 garante o reajuste de 93,81% para toda a segurança pública do estado, além de um Plano de Cargos e Salários e outros direitos que toda classe trabalhadora tem. A Lei também tem como objetivo diminuir o abismo entre os patamares salariais dos praças e dos oficiais. A Lei foi editada em 2004. Mas durante mais de quatro anos policiais e bombeiros catarinenses esperaram que o salário esquentasse, porque mesmo com a Lei, o salário da categoria continuou congelado. Hoje, cerca de 30% do previsto no reajuste foi concedido aos praças, enquanto os oficiais já obtiveram por volta de 60% do montante previsto.
Em frente à ALESC (Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina), debaixo de uma tenda branca, com murais repletos de fotos, algumas mulheres se agitam. Elas olham desconfiadas para todo o movimento no entorno. Parece que a praça em frente à casa legislativa não inspira um ambiente de confiança. Não é sarcasmo. É que os chamados P2 - espiões da polícia - andam circulando o local. Qual é a ameaça que essas mulheres representam para serem vigiadas dessa forma?
Lúcia Pereira, Jeane Toledo, Ana Paula Stadnick e Edileusa Garcia Fortuna são esposas de Policiais Militares. Ali, na tenda branca, elas fazem piquete. É o sonho de justiça e de dignidade que move essas mulheres. Lá, elas conversam com o povo, recolhem assinaturas – já são mais de 30 mil na Capital – e fazem vigília. Desde que o Movimento das Esposas e Familiares dos Praças tomou a frente na luta pelo cumprimento da Lei 254, cerca de 20 delas já foram intimadas. No documento enviado para Edileusa constava: Intimação para oitivo de inquérito da Policia Militar. “Não fui porque não sou policial!”diz ela. A pressão não vem só do P2 que circula na praça enquanto elas conversam com o jornalista do SINTRAJUSC, ou da intimação que recebida pelo filho de 10 anos de Edileusa na sua própria casa. A pressão vem de todos os lados. Inclusive da situação do próprio marido, que assim com outros PM’s, presta esclarecimentos no Conselho Disciplinar da Policia Militar. Apesar dos quase 30 anos de carreira, e de estar prestes a ser promovido a Tenente, ele tem que colocar sob julgamento sua capacidade profissional e seus valores morais. É a primeira vez que ele é convocado para tal Conselho, justamente na época em que o movimento foi deflagrado. O marido de Edileusa, assim como outros 17 PM’s, pode ser excluído da corporação.
25 de Dezembro de 2008. Natal. Familiares dos praças fazem à ceia nos quartéis ocupados pelo movimento. A noite foi longa, mas não por causa do clima festivo do aniversário de Jesus. Notícia ruim chega rápido. O Batalhão de Operações Especiais de Policia (BOPE) havia sido acionado. Eles iriam invadir os quartéis na noite de Natal. Desenhava-se então uma tragédia. Os praças tinham acesso às armas do batalhão e, se houvesse confronto, eles não iriam apanhar calados. O clima ficou tenso. Talvez fosse o espírito natalino e a presença de divina – para aqueles que acreditam – que evitou um confronto sangrento. Mas o fato, independente da esperança e da fé, foi que 80% dos oficiais do BOPE se negaram a participar da operação. A Tropa de Elite também tem valores como companheirismo e senso de justiça, não é só “tapa na cara”. Eles não confrontariam os praças, seus colegas de trabalho. Dada à situação, o governo do estado pediu a presença da Força Nacional de Segurança. Com a notícia, os praças mudaram a estratégia. Desocuparam os quartéis. Quem então é violento? A Policia ou o estado autoritário?
Apesar de ter declarado publicamente apoio a APRASC na época de campanha eleitoral, o Governador do Estado, Luiz Henrique da Silveira, insiste em dizer que a associação não existe, que não reconhece tal entidade. O direito a organização civil está previsto na Constituição, mas ao que tudo indica policial não é cidadão, não é trabalhador, não é povo. É o que então? Será que tudo isso é medo de que os policiais passem para o lado dos trabalhadores? Quando isso acontecer, à cantiga do soldado cabeça de papel vai soar como um hino de esperança, não um símbolo de repressão. ...“Acorda, acorda, acorda a bandeira nacional”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário