terça-feira, 20 de maio de 2008

Ignacy Sachs diz por que o Brasil será o país líder da biocivilização

O polonês naturalizado francês Ignacy Sachs passou parte da vida no Brasil, como refugiado da Segunda Guerra Mundial, e aqui se formou em Economia. Vivendo hoje na França, professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, é chamado de ecossocioeconomista por alinhar conceitualmente crescimento econômico à preservação ambiental e ao bem-estar social.

Sachs vem com freqüência ao Brasil e, ao longo dos últimos anos, quem assiste a suas palestras sai com a certeza de que este, enfim, é o país do futuro. Pelo menos do futuro como Sachs o imagina, em que a fonte de energia e de vários outros produtos será não mais os combustíveis fósseis - petróleo, gás natural e carvão mineral -, mas a biomassa. O Brasil tem tudo o que a natureza pode dar, só falta alguma vontade e muito planejamento para melhor usar tudo isso.


Instituto Ethos: O que é a biocivilização, que o senhor diz que vai substituir a civilização do petróleo?

Ignacy Sachs: O historiador britânico Clive Ponting, no livro A História Verde da Humanidade, fala de duas grandes transições no passado. A primeira foi a passagem da coleta e caça para a agricultura e pecuária, uns 7.000 anos atrás. A segunda foi a grande transição para as energias fósseis, o que aconteceu a partir do século XVIII.

IE: E que veio junto com a revolução industrial.

IS: Que propiciou a revolução industrial, com fenomenais progressos técnicos, com aumento da produção, aumento da população, tudo isso. Agora, se queremos realmente evitar graves problemas com as mudanças climáticas, e com o que biólogos como Edward Wilson chamam de sexta grande extinção das espécies, temos de pensar não só na saída do petróleo, que vai demorar mais algumas décadas e provavelmente vai provocada pelo esgotamento do petróleo, e sim tentar sair das energias fósseis todas. E o que nós tínhamos antes das energias fósseis para manter nossa civilização? A energia solar captada pela fotossíntese, e depois usada como alimento humano, como ração animal, como matéria-prima etc. Então, estaremos de volta a uma biocivilização, ou seja, a energia solar captada pela fotossíntese passará a exercer um papel importante. Obviamente não exclusivo, mas importante. Vale lembrar que biomassa, para nossa civilização, é alimento humano, é ração animal, é adubo verde, é bioenergia, é material de construção, é matéria-prima para todo um leque de produtos da química verde, fibras, plásticos e mil outros produtos, cosméticos e fármacos. É um mundo. Eu chamo de biocivilização moderna uma civilização que vai tentar fazer o melhor uso possível dos produtos derivados da biomassa.

IE: Isso não significa uma volta à era pré-industrial?

IS: Não, gostaria de enfatizar que não se trata de uma volta para trás, para a idade das cavernas. E sim trata-se de um pulo de gato, um leapfrog, porque estamos voltando a essa energia solar em um outro nível da espiral dos nossos conhecimentos. Nós sabemos hoje, e vamos saber amanhã, extrair dessa biomassa um leque cada vez maior de produtos.

IE: E qual será o modelo dessa biocivilização? O senhor sempre comenta que será possível gerar mais empregos no campo, mas há também o risco de termos grandes propriedades rurais e montes de favelados nas cidades.

IS: Os modelos sociais vão de uma agricultura altamente mecanizada, sem homens, feita sobre latifúndios, até uma agricultura familiar com uma escala bem menor, e em geral baseada na policultura, e não na monocultura. Há também um conceito que está cada vez mais importando nesse debate: a pluriatividade do agricultor familiar e da sua família. Ou seja, ele não faz só uma coisa, ele faz várias coisas, dependendo da época do ano, e dependendo de qual pessoa se trata na família.

IE: Como assim?IS: Por exemplo, todas as oportunidades de emprego não-agrícolas que existem no meio rural. Você pode puxar uma parte da indústria de transformação para o campo. Com os progressos da tecnologia de comunicação, você gera toda uma série de atividades que podem ser descentralizadas, e onde não tem as economias de escala típicas da grande indústria de transformação. Depois, há uma certa mobilidade, ou seja, um membro da família pode estar trabalhando na cidade vizinha. E há também todos os serviços. Suponha que num assentamento de reforma agrária você reúna 500 famílias, cada uma delas recebe 10 hectares para cultivar o dendê, por exemplo, isso dá um emprego durante o ano todo para o chefe da família, pois o dendê produz durante o ano todo. E mais: vai haver a usina de óleo de dendê, vai ser preciso ter transporte, vai ser preciso ter serviços técnicos. E outra parte da família pode usar oito ou dez hectares para uma atividade agrossilvopastoril, para gerar mais um ou dois empregos. E 500 famílias é uma comunidade de 3000 pessoas, vai haver necessidade de serviços sociais, escola, creche, saúde e comércio - e também do primeiro indicador sério de progresso civilizatório: salões de beleza.

IE: Isso tudo vai gerar mais emprego.

IS: Sim, na realidade você gera, a partir de um processo de reforma agrária, um processo de transformação do assentamento em uma vila agroindustrial. E é nessa perspectiva que a gente tem que trabalhar. Agora, para resolver o problema de alimento, eu diria que a primeira fase de um assentamento deveria ter três componentes. Primeiro, sobre meio hectare para cada família, cria-se um projeto agroecológico integrado sustentável de produção intensiva de hortigranjeiros, com um galinheiro no meio, que vai assegurar o sustento da família e ainda algumas sobras para o mercado. Isso leva seis meses para ser feito, os custos dessa implantação são da ordem de 4.000 a 5.000 reais. Ao mesmo tempo, você inicia um mutirão assistido para construção das casas. Terceiro, você toma o cuidado de implantar desde o começo uma escola. Isso significa que, no primeiro ano, você resolve os problemas essenciais dos assentados, você os libera da cesta básica, e gera assim um espaço para irmos a projetos de maturação mais lenta, que podem ser coletivos ou individuais, e tomar diferentes formas de empreendedorismo.

IE: Como no caso do projeto baseado no cultivo do dendê e em uma fábrica de óleo.

IS: Nesse caso, o dendê aparece como uma oportunidade. Sempre lembrando o duplo uso do dendê, pois quando se faz a extração do óleo, as borras que ficam se prestam à produção de biodiesel. Ou, para simplificar, numa primeira extração temos o óleo para a moqueca, na segunda, para o automóvel. De qualquer forma, o dendê é um dos alimentos mais importantes no mundo hoje, é a gordura vegetal mais difundida.

IE: o senhor está dando um exemplo que pode ser aplicado ao Brasil. Por que o Brasil pode ser um dos principais atores nessa biocivilização?

IS: Porque tem um território que é um continente, está abençoado com a maior biodiversidade do mundo, tem uma boa dotação de recursos hídricos, com exceção do Polígono das Secas, e o sol é e sempre será eterno. Portanto, é uma série de vantagens comparativas naturais, às quais se agrega a existência de uma pesquisa agronômica e biológica das mais importantes, sobretudo uma competência indiscutível na agricultura tropical. O Brasil é a principal potência mundial em matéria de agricultura tropical. Portanto, como se diz na gíria, vocês estão com a faca e o queijo na mão. Agora, falta fazer, e são necessários para isso vários instrumentos de política pública para canalizar esse processo na boa direção não só ambiental, mas na boa direção social.

IE: O que é preciso para que isso aconteça?

IS: Para isso, a meu ver é necessário Zoneamento Econômico Ecológico, com uma etapa prévia que é pôr em pratos limpos a estrutura fundiária e os direitos de propriedade. Também uma certificação socioambiental rigorosa, não só para o mercado externo, mas também para o mercado interno. E, para promover os pequenos agricultores, o que eu chamo uma política de discriminação positiva, que passa pela capacitação, pela assistência técnica contínua, por créditos baratos e até subsidiados e acesso aos mercados. Mais uma pesquisa que faça jus à biodiversidade. Não só uma pesquisa das espécies vegetais e animais terrestres, mas vocês têm um potencial extraordinário para aquilo que eu chamo de revolução azul, ou seja, a passagem da pesca à piscicultura. Quando se tem um litoral que vocês têm, a Amazônia - que é uma paisagem semi-aquática-, o Pantanal e milhões de hectares de espelho d?água e reservatórios de hidrelétricas, além de uma biodiversidade em matéria de peixes e anfíbios enorme, é difícil imaginar um país que tenha melhores condições para avançar. Mas, veja como a gente tem de pensar sempre sistemicamente. É bom criar peixes, fazer a piscicultura. Mas seria ainda melhor se vocês conseguissem criar peixes herbívoros com uma ração feita com resíduos vegetais. Houve um projeto no sul da Bahia que tentou criar tilápias em tanques, alimentadas com uma ração de folhas de mandioca e de bananeira. Parece que a tilápia não gostou, mas quem sabe se vocês botarem uma outra mistura, e agregarem um ou outro sabor de Brasil, um temperozinho bem baiano, a tilápia vai gostar. Fonte: Instituto Ethos - 20/5/2008

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